Ex-prefeito de Tamandaré (PE) e esposa, do caso do menino Miguel, são condenados por danos morais coletivos
Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, patrimonialismo e racismo estrutural foram temas tratados no julgamento
30/06/23 – A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho confirmou a condenação do ex-prefeito de Tamandaré (PE), Sérgio Hacker, e sua esposa, Sari Corte Real, ao pagamento de R$ 386 mil de indenização por danos morais coletivos. O casal era empregador da mãe e da avó do menino Miguel Otávio, que, em junho de 2020, morreu ao cair de um prédio no Recife, depois de ser deixado sozinho no elevador pela patroa.
O colegiado concluiu que o casal reproduziu padrão social discriminatório e racista em relação às trabalhadoras domésticas, cuja contratação foi fraudulenta e paga indevidamente pelos cofres públicos. Além disso, a exigência de trabalho durante a quarentena da covid-19 e a negligência quanto às normas de segurança do trabalho, que resultou na morte do menino, foram consideradas gravíssimas violações humanitárias trabalhistas que agrediram drasticamente o patrimônio imaterial de toda a sociedade brasileira.
Caso Miguel
O caso ocorreu em 2 de junho de 2020. Em razão da pandemia, a mãe de Miguel não podia deixá-lo em escola ou creche e teve de levá-lo para o trabalho, no quinto andar do condomínio Píer Maurício de Nassau. As imagens de uma câmera de segurança mostraram a proprietária do apartamento apertando um botão do elevador, indo embora e deixando a porta se fechar com o menino, que saíra para buscar a mãe (que havia levado o cachorro da família para passear). No nono andar, ele subiu num parapeito de alumínio que não resistiu ao seu peso e caiu de uma altura de 35 metros.
Ação civil pública
A partir das notícias sobre o caso, o Ministério Público do Trabalho (MPT) abriu investigação, ouviu pessoas que trabalhavam no condomínio e constatou diversas irregularidades na situação das três empregadas domésticas da casa. Além de exigir que elas trabalhassem durante a pandemia, mesmo quando havia pessoas contaminadas no apartamento, os patrões pagavam os salários com recursos da Prefeitura de Tamandaré, mas não recolhiam as contribuições previdenciárias, não pagavam o 13º nem horas extras nem concediam direito a férias.
Com base nas apurações, o MPT ajuizou uma ação civil pública, sustentando que as empregadas trabalhavam há anos sem ter seus direitos trabalhistas básicos garantidos e eram mantidas em atividade em total contrariedade a regras de saúde pública, com risco à sua saúde e à de seus familiares. Por esses e por diversos outros aspectos, pedia a condenação do casal ao cumprimento de diversas obrigações e ao pagamento de indenização de R$ 2 milhões.
O juízo de primeiro grau arbitrou a indenização em R$ 386 mil, e a sentença foi mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (PE).
Grave violação humanitária trabalhista
O ministro Alberto Bastos Balazeiro, relator do recurso de revista dos empregadores, ressaltou que, no momento em que caiu do novo andar, Miguel estava sob a tutela jurídica temporária da patroa. O caso, a seu ver, trata de violência inequívoca à integridade psíquico-social das trabalhadoras, cujo efeito danoso (a morte da criança) “vai de encontro aos interesses sociais e aos valores jurídicos mais básicos de todo Estado Democrático de Direito, os direitos à vida, à infância protegida e a um ambiente de trabalho digno e protegido”.
Racismo estrutural
O ministro assinalou que, de acordo com o TRT, o caso revela uma dinâmica de trabalho permeada por atos “estruturalmente discriminatórios”, que “gira em torno da cor da pele, do gênero e da situação socioeconômica” das trabalhadoras domésticas. Essa conclusão, a seu ver, está ancorada em muitas outras premissas fáticas que revelam o padrão e discriminação com que elas eram tratadas.
De acordo com Balazeiro, esse padrão tem por escopo o racismo que estrutura o trabalho doméstico e permeia as relações sociais brasileiras. “É de interesse de toda a sociedade a extirpação de condutas racistas, a partir das quais são reproduzidos padrões de comportamento que perpetuam a lógica esmagadoramente excludente do passado escravocrata do Brasil”, afirmou.
No mesmo sentido, o ministro Mauricio Godinho Delgado classificou o caso como chocante e desumano. “Lamentavelmente, as elites brasileiras, mesmo após quase 400 anos de escravidão, não retiraram a escravidão dos seus corações e das suas mentes e, por isso, reproduzem o racismo estrutural nas instituições, nas práticas cotidianas e na sociedade civil”.
Naturalização da fraude
No caso concreto, o relator observou que os registros do TRT revelam alguns dos benefícios obtidos pelos empregadores - entre eles, a naturalização da fraude contratual envolvendo mulheres negras que, formalmente, eram empregadas do Município de Tamandaré, embora prestassem serviços domésticos. “Diante desse cenário, eles se beneficiaram do uso indevido do dinheiro público e da manutenção de uma lógica excludente e precarizante das trabalhadoras domésticas”.
Perspectiva de Gênero
O relator analisou o processo a partir das balizas do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aplicável aos casos que discutam desigualdades estruturais e seus efeitos sobre a sociedade e a Justiça. “A análise das particularidades que envolvem as relações de trabalho doméstico no Brasil, a partir das lentes oferecidas pelo Protocolo, concretiza-se como um dos caminhos para a justiça social”, explicou.
O ministro José Roberto Freire Pimenta se associou à fundamentação do relator, destacando que a decisão é pioneira na Turma quanto à utilização do protocolo, cujo objetivo é avançar na justiça social por meio da adoção de medidas que possibilitem um ambiente de trabalho decente.
Exemplo para a sociedade
O ministro Freire Pimenta também criticou a conduta patrimonialista dos empregadores, própria do período colonial brasileiro, em razão de as empregadas negras terem sido contratadas pela prefeitura e prestarem serviços domésticos pessoais na residência da família do prefeito. “esse caso que vai reproduzir para toda a sociedade um exemplo de resposta jurisdicional firme, equilibrada, mas justa contra aqueles que estão praticando atos que não podem mais serem considerados normais na sociedade brasileira no seu atual estado de civilização”, ressaltou.
Caráter civilizatório da decisão
Os ministros encerraram o julgamento ressaltando o caráter civilizatório da decisão e mantiveram o valor da condenação, ante a ausência de recurso do Ministério Público do Trabalho nesse sentido.
A decisão foi unânime.
(Bruno Vilar e Carmem Feijó/CF)
Processo: RRAg-597-15.2020.5.06.0021
Publicado em 25/11/2024 Fonte